"... as estatísticas demonstram a falta de acesso das pessoas com deficiência à educação, até mesmo ao ensino fundamental, etapa obrigatória de ensino escolar".
É função institucional do Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesta última categoria se insere, com absoluta prioridade, o direito de crianças e adolescentes à educação. E, ainda, se formos admitir uma espécie de hierarquia entre valores protegidos no ordenamento jurídico brasileiro, vamos verificar que os direitos de crianças e adolescentes com deficiência estão no topo dessa lista de prioridades para que o Ministério Público exerça seus deveres constitucionais.
Assim, temos estudado e trabalhado o tema objeto deste artigo com grande afinco, pois as estatísticas demonstram a falta de acesso das pessoas com deficiência à educação, até mesmo ao ensino fundamental, etapa obrigatória de ensino escolar. Verificamos que ninguém, conscientemente, nega às pessoas com deficiência tal direito. Acontece que, diante de uma omissão histórica do Estado, e não só o brasileiro, muitas pessoas imaginam que esse direito estaria cumprido se crianças e adolescentes com deficiência fossem educados exclusivamente em ambientes especializados e segregados. A partir da década de 1990, porém, se intensificaram, mundialmente, as conclusões de especialistas de que a educação não pode ser feita apenas de forma segregada e isso tem total respaldo no âmbito jurídico.
Mesmo com esse respaldo jurídico, as resistências a essa educação, que tem sido chamada de 'inclusiva', são enormes. As justificativas mais comuns dessa resistência se baseiam nas dificuldades práticas em se ter, na mesma sala de aula, alunos com e sem deficiência, apesar de muitas escolas já estarem fazendo isso, com sucesso. Diante desse cenário e de reconhecermos que a educação inclusiva é ainda uma novidade no Brasil nos 'atrevemos' a participar da redação de uma cartilha explicando como e por que fazer inclusão educacional de pessoas com deficiência. Dissemos 'atrevimento' porque essa cartilha - da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, e não do governo federal/MEC, que apenas deu seu apoio - tem sido duramente criticada e distorcida.
Nosso atrevimento pode não ser em vão. Houve tempos em que se via 'total impossibilidade prática' em receber mulheres e homens, ou pessoas de diferentes raças e religiões, na mesma sala de aula. Tudo foi superado em nome do direito à igualdade e à dignidade da pessoa humana. Esperamos que os argumentos apoiados nas 'dificuldades práticas' cedam lugar à consciência de que as crianças e os adolescentes com deficiência também têm esse direito indisponível, que deve ser exercido sem diferenciações que levem a exclusões e restrições no âmbito escolar.
Basta que as escolas comuns, sem dispensar as parcerias com as escolas especiais, conforme insistentemente sugerido na referida cartilha, se tornem cada vez mais includentes nas suas práticas pedagógicas, o que beneficiará a totalidade dos alunos. A escola que se organiza para receber apenas alunos que atingem um determinado nível de desenvolvimento intelectual é uma escola que exclui até mesmo alunos sem nenhum tipo de deficiência. Que família nunca enfrentou a difícil situação de ver um de seus filhos ou filhas rotulados por não acompanharem sua turma como a escola esperava? A escola de ensino fundamental que recebe e mantém matrículas só de alunos que 'acompanham a turma' demonstra que privilegia a transmissão de conhecimentos em detrimento do desenvolvimento humano, acabando por prejudicar o futuro pessoal e profissional dos educandos. Acaba também por não cumprir os objetivos constitucionais, segundo os quais a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania.
Finalmente, vale frisar que, em relação à deficiência mental, o reconhecimento da titularidade do direito indisponível ao ensino fundamental é ainda mais delicado. No entanto, está comprovado, cientificamente, que pessoas com deficiência mental são seres inteligentes e capazes de aprender. Quanto mais lhes é dada a oportunidade de aprender, principalmente na convivência com alunos sem deficiência mental, mais surpreendem a todos com o seu desenvolvimento, que não precisa ser igual ao de ninguém.
A admissão de diferentes níveis de desenvolvimento deve aplicar-se a todos os alunos. SÃO ENORMES AS RESISTÊNCIAS À EDUCAÇÃO CHAMADA DE ´INCLUSIVA´ Nesse sentido, a insistência das escolas em nivelar o aprendizado tem sido apontada como indevida há décadas. E para que não pairem dúvidas: a inclusão educacional, bem feita, jamais implicará o fechamento das escolas especiais. Ao contrário, elas têm um importante papel para uma inclusão educacional bemsucedida. Papel que lhes é próprio e não substitui, mas complementa, as escolas comuns.
O discurso palatável de que 'há casos em que a inclusão não é possível' tem sido muito aplicado, especialmente, no tocante à deficiência mental. Casos extremamente graves, de crianças sem interação com o ambiente externo, não são admitidos em muitas escolas especiais. A maioria do alunado dessas escolas é composta por crianças e adolescentes, com e sem deficiência, que não poderiam estar fora das escolas comuns, e este conceito deve ser revisto prioritariamente.
Jornal O Estado de S. Paulo
11/06/2005
* Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, procuradora da República, é autora do livro Direitos das pessoas com deficiência: garantia de igualdade na diversidade, pela WVA Editora, e co-autora da cartilha, O acesso de alunos com deficiência às classes e escolas comuns da rede regular de ensino, pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
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